terça-feira, 24 de abril de 2007

MATÉRIA NA REVISTA TRIP

http://revistatrip.uol.com.br/147/eletrocristo/home.htm

“Soooolta o pancadão!”
TUM! TUM TSS! TUM! TUM TSS! TUM!
MC Charles ergue o braço e prepara a pista pro funk carioca.
“Evangeliza, DJ!!”
Oi? Ele disse... Evangeliza?
TUM! TUM TSS! TUM! ! “Se arrepeeeende, ôôôô!” TUM! TUM TSS! “E pede perdãããão!”

Sim, ele disse isso mesmo. E entra na pista de grama esmagada um bonde cristão — garotas em trajes nada erotizados para dançar o funk e agitar a craude. Só palminhas para cima e braços agitados. Nada de movimento pélvico, nenhuma nádega em destaque.

MC Charles é do bairro de Chatuba, um dos maiores centros pancadão do Rio, e berço de algumas das mais safadas letras já escritas em português. Mas não ele. Não o MC Charles. Pois diz ser a prova viva do poder de Deus e de padre Marcelo Rossi. Aconteceu assim: ele tinha um gravíssimo problema de coluna e uma cirurgia marcada. Mesmo se fosse bem-sucedida, nunca mais ele poderia levar uma vida vertebral normal.

Dois dias antes de entrar na faca, escutando meio que por acaso o programa de rádio de pe. Marcelo... “... você que está no hospital, um rapaz com problema na coluna assim, assim... você está curado!”. E, segundo Charles, curou-se mesmo. O médico não acreditou no retrocesso da nefasta hérnia e deu alta. Sem o milagre, Charles jamais poderia estar daquele jeito, curvado e chacoalhando os ombros como seus ídolos noutros tempos: Claudinho e Buchecha.

Na cabeça, uma frase bate estaca, como um mantra niilista:
“Eu só acreditaria em um Deus que soubesse dançar”.

Quem rezou a máxima acima foi um gênio da blasfêmia, Nietzsche, em seu Zaratustra. Mas que diria o filósofo se estivesse ali, naquela ocasião de proporções... bíblicas. Mil jovens a fim de bombar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tudo nos moldes outrora profanos das festas criadas em Ibiza. A primeira rave católica do Brasil — Electrocristo, A Festa.
Mas... Funk em uma rave? Sim. Funk, dance, techno, um ou outro remix mais meloso e tudo podendo se alternar em questão de 15 minutos. DJ Laércio explica: “A gente toca de tudo, não tem muito estilo definido mesmo como no mundo secular”. Também por isso, além de duas pistas de dança, havia um trio elétrico para shows de bandas. Rock, pop, romântico.
Nada de birita, nada de excessos e, nem precisa falar, nada, nada, nada de drogas. Nesse sentido, fica claro desde o início, a Electrocristo é a anti-rave.

Anti-rave, deveras. Sem filas. Sem revista. E apenas na portaria deu para ouvir o som das caixas. A cena era uma aparição. Circulando entre a jovialidade, logo na entrada, um padre de batina negra completa, de mãos juntas e com um franco sorriso de aprovação. Assim começou o caminho para a ferveção (sem alusão ao inferno). » próxima página
Habemus Carisma
Eventos cristãos desse tipo normalmente são erguidos por evangélicos. Protestantes, há muitos séculos, são bem menos apegados aos rituais herméticos como os da Igreja Católica. Agora, não para os católicos da renovação carismática, responsáveis por essa festa. Surgiram no fim dos anos 70, no Vale do Paraíba, em São Paulo, como uma maneira de atrair mais jovens para as missas. A chave da propaganda é o “carisma”, daí o nome. Eles são a facção católica que mais se confunde com os evangélicos na hora de louvar. Até porque foi uma espécie de reação dos padres à eficácia dos pastores na hora de converter jovens. O Vaticano, que não é lá muito dado a festinhas e coreografias, faz uma espécie de vista grossa aos carismáticos brasileiros. Apesar da liturgia pop, fica difícil condenar um poderoso meio de manter gente fiel à Igreja Romana no maior país católico do mundo.

Trata-se de uma rave, insisto, logo, o som é eletrônico. Mas como batidas e timbres sintéticos não são muito explícitos na hora de transmitir ensinamentos, todas as músicas têm letras, em geral remixes de canções católicas de sucesso. Exemplo? Padre Marcelo Rossi, o Roberto Carlos dos apostólicos romanos adeptos da renovação carismática. Entre cada hit, DJ Galvão, de óculos amarelos e uma conveniente lâmpada de minerador sobre a cabeça, dá aquela pregadinha:

“Mãozinha lá em cima louvando o Senhor!”. E lá estão as mãos. “Dê o seu melhor pra Deus”, anuncia outro single, e o delírio coletivo. Mas a dança em si não parece nada com os espasmos cool ou os saltos aditivados de raves mundanas. O povo de Deus não é lá muito experiente em pistas descolês, sabe? A convenção é dançar em grupo, todos juntos em passinhos antiquados de bailes black. Ou então uma ressurreição diante dos olhos incrédulos da reportagem: os movimentos da “Macarena”, desta vez sob um beat forte e o refrão “A-LÊ-LU-IÁ !”.

DJ Galvão é um dos stars da Electrocristo, a agência de DJs e promotora da Cristoteca, a balada em nome de Jesus que acontece toda sexta-feira no bairro do Brás em São Paulo. O público é, com o perdão do trocadilho, fiel. Por isso, quando ele brada, “Quem sabe a dança de Nazarééééééé?!”, todos retrucam, “Eeeeeeeeeuuuu!”.

Um homem em traje futurista prateado e com o rosto pintado no mesmo tom surge para guiar a turba. Todos se alinham, dando espaço para a mudinha de figueira que cresce no meio da pista. E com um remix de uma melodia clichê árabe, começam a dançar com aquela clássica mãozinha de tumba egípcia.

Enquanto isso outra prerrogativa raver se colocou na grama: o grupo de pirofagia. Enquanto gloriosas línguas de fogo são expelidas sob sonoros “ohhhs”, Wanderson fala conosco. Ele veste uma camiseta amarela berrante com um Jesus pintado à mão nas costas. Wanderson, na pista, era o mais empolgado: “Eu era católico de batismo, mas achava um saco missa. Mas, no último dia do meu crisma, vi na igreja a sombra de Cristo na hora em que o bispo levantou a eucaristia”. Foi uma reveleção. O rapaz tinha então 15 anos e escutava as rádios eletrônicas de SP. Hoje, mantém os beats no microsystem do quarto em Piraporinha, mas só dos remixes católicos. Algum som evangélico? “Não. Nós adoramos o mesmo Cristo, mas eu acredito na nossa doutrina, da Igreja que Cristo fundou”, explica com o olhar duro e decidido antes de se jogar na pista pulando o mais alto que pode e sacudindo o terço de madeira que ostenta no pescoço.

A única fumaça que ascende ao céu vem do cigarro do fotógrafo da Trip, o Peetssa, que, peculiarmente, era o único oriental por ali. Logo, pelo vício e ascendência, dava bandeira na festa. Como dava bandeira o único casal que presenciamos aos beijos, ou o casal de pais grisalhos que aguardava as filhas observando a pista inundada de lasers verdes e fumaça de gelo-seco.

Do trio elétrico, o cantor Dunga ordena: “Acorda pra vidaaaa!”. Mas acordar pode ser difícil, principalmente depois das quatro da manhã, sem insumos ou estímulos terrenos. Assim, pelas arquibancadas da quadra que abrigava a maior das pistas, dezenas dormiam encasulados esperando o fim da festa, os ônibus circularem ou os pais chegarem com a carona. Pouca gente foi de carro pra lá. A maioria era menor de idade.

O flyer promete festa até as sete. Mas não chegou a tanto. Quando a última atração da noite entrou no palco do trio elétrico, a banda Eterna, coisa de 5h30, poucas almas pingadas resistiam. Vocais tipo Angra, hard rock, maldizendo o álcool encerraram o show. Os músicos não jogam suas palhetas ou baquetas. Jogam rosários. Uma garota, exultante por ter pegado um, olha o céu: “É bizantino!!!”.

E, imediatamente, um cinturão de mais de 20 seguranças vem de mãos dadas enxotando os cybers de Cristo sob o tímido sol que cintilava o sereno gelado da noite na represa. Os últimos a deixar a festa foram William e Júnior. O primeiro trabalha no pedágio da Autoban, o outro, como auxiliar contábil na cidade de Sumaré. E, naquele enevoado início de sábado, receberam uma provação. A bateria do Corsa arriou. O carro não pega. A dupla, isolada naquela terra hostil de seguranças em debandada e oficinas fechadas, iria começar uma via-crúcis.

Bem, e aí, gostaram da festa? “Foi legal. Gostei, sim. Valeu muito”, diz William que, normalmente, escuta pagode. Mas e agora. Vai fazer o quê? William dá de voleio: “Vamos rezar”. A reportagem gargalha. Os dois sorriem, mas não acham graça.

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